segunda-feira, 5 de março de 2012

[CREEPY] Enquanto esperamos o ônibus - Continuação

O velho olhou pra ele, com olhos esbranquiçados pela idade, fundo nas órbitas.

- É normal sentir medo na sua idade. Com o tempo, a gente vai ficando mais duro pra vida. Eu por exemplo, com meus oitenta e tantos anos, só tenho medo de duas coisas.

Jonas ia argumentar com o velho que não era bem medo que ele estava sentindo, mas a ultima coisa que o velho falou havia atiçado sua curiosidade.

- De duas coisas? E quais são elas?

O velho riu, olhando para baixo e disse: “Baratas e contos de terror”.


Apesar do nervosismo, Jonas deu uma risada:

- Baratas até eu entendo. Aquelas coisas são asquerosas. Mas contos de terror? Isso é novidade. Por que o senhor tem medo de contos de terror?

O velho voltou a olhar pra ele:

- Por que é através deles que nós conseguimos ver o quão doentia pode ser a mente humana.

Jonas ficou calado olhando para o homem. O velho havia falado aquilo num tom de voz que um presidiário falaria dos seus anos na prisão. Como alguém que realmente sentisse medo de um passado tenebroso. Medo que esse passado voltasse a persegui-lo.

- Mas ainda assim eu adoro ouvi-los! – disse o velho rindo, meio que percebendo o desconforto de Jonas.

Jonas riu também e comentou:

- É, tem uns bem assustadores. Eu mesmo conheço um bocado que eu ouvia quando era criança. Até me arrepio quando lembro deles – disse ele mostrando o braço com o dedo indicador.

- É mesmo? – perguntou o velho, parecendo interessado – Qual o conto que você conhece que você acha o mais assustador?

- O mais assustador? – Jonas olhou para o céu pensando – Acho que o do ônibus escolar. Esse é dos infernos.

- Nunca ouvi – disse o velho olhando para o começo da rua – Você quer contar? Seria ótimo ouvir uma boa história de terror. Pelo menos enquanto esperamos o ônibus chegar.
Jonas riu, meio sem graça, mas viu que o velho tinha razão: Lá no começo da rua, a neblina soprava em espirais, levantando papéis e jornais e jogando-os na calçada. Não era preciso um ouvido apurado para saber que nem ao longe o ônibus estava vindo.


Ele olhou para o velho, que o fitava atentamente e disse:

- Para quem tem medo de contos de terror, o senhor pareceu bem interessado.

- Não temos mais nada de útil para fazer, temos?

- É, o senhor tem razão – disse Jonas jogando a ponta do cigarro no meio da rua – mas depois não venha me disser que assustou. Por que eu já vou logo avisando, esse conto é do mal. Ele começa assim:
“Conta-se que por volta dos anos 50, numa cidadezinha perdida do interior, um ônibus escolar transportando quarenta crianças para uma escola local teve uma falha mecânica e parou em cima de um trilho de trem. Por mais que o motorista tentasse, o ônibus não voltava a pegar. Então, enquanto o motorista tentava dar partida no motor, ele ouviu um apito de trem soando a distância além da neblina”.

“Ele tentou, tentou e desesperado, pediu para as crianças descerem do ônibus antes que o trem chegasse. Mas não deu tempo. O trem acertou o ônibus em cheio e matou todo mundo. As crianças, o motorista. Todo mundo”.

“Os anos se passaram, a cidade se recuperou aos poucos da tragédia. Mas de vez em quando, ouviam-se histórias de carros que morriam em cima do trilho de trem no mesmo cruzamento do acidente e que, misteriosamente, eram levados para o outro lado por uma força desconhecida”.
“Tentando descobrir que tipo de força agia sobre o carro, os cientistas instalaram diversas câmeras especializadas, microfones sensíveis e cobriram o carro de talco, para ver se algum ponto de pressão era exercido sobre o carro no momento da travessia. Mais uma vez, o carro atravessou os trilhos sozinho, enquanto os cientistas acompanhavam os monitores”.

“Nada foi detectado pelas câmeras ou pelos microfones, mas quando os cientistas foram ver se o talco tinha sido marcado, ficaram horrorizados com uma descoberta: no vidro de trás do veículo, como também sobre a mala, havia marcas de dezenas de mãozinhas de crianças. Como se os espíritos dos que morreram estivessem fazendo de tudo para garantir que aquela tragédia nunca mais voltasse a acontecer”.

Enquanto Jonas tragava satisfeito o seu terceiro cigarro, o velho passou a mão na boca e deu uma risada.

- Realmente, é uma história dos infernos – disse – É de arrepiar.

- Aham – disse Jonas – Li uma vez num livro de contos de fantasmas. Passei uns dois dias sem dormir.

O velho pareceu espantado e disse:

- Ah, então isso não aconteceu?

- Claro que não – riu Jonas enquanto soprava a fumaça do cigarro – E Deus me livre que aconteça. Quarenta crianças, assim de repente. Cruzes.

O velho voltou a olhar para a rua enquanto disse:

- É uma pena.

- Como assim “é uma pena”? – perguntou Jonas

- Essa história iria ficar muito melhor se fosse de verdade – murmurou – Iria ser muito mais assustadora. Contos de terror causam muito mais medo quando é “baseado em fatos reais”.

Jonas olhou para o velho por um tempo, tentando achar o que falar. Não conseguindo, resumiu-se a olhar para o começo da rua, esperando ver um sinal do seu ônibus atrasado.

- Eu tenho uma história melhor – disse o velho, repentinamente – e essa aconteceu de verdade.

- Um conto de terror que aconteceu de verdade? – perguntou Jonas com um ar duvidoso.
- Sim, senhor – afirmou o velho – aconteceu com um homem que morava sozinho numa casa...

“Diz que ele nunca saía de lá nos dias de neblina por que toda vez que ele olhava pela janela, ele via à distância, bem no limite da visão, uma sombra terrível de um homem olhando para sua casa”.

“Seus cachorros latiam enlouquecidos no portão em frente ao jardim, na direção a sombra. Ela nunca se mexia e só ia embora quando a neblina passava. Certa noite, com a neblina cobrindo tudo, ele acordou com os cães latindo com mais determinação ainda e, decidido a acabar com aquilo de uma vez por todas, abriu a porta da frente de casa para descobrir quem era aquela pessoa”.

“Ao abrir a porta, deu de cara com uma neblina tão cerrada como ele nunca havia visto na vida e percebeu, desesperado, que os cachorros não estavam mais latindo para fora da casa, mas sim, para dentro. Os cachorros latiam para ele”.

“Apesar de não ter se virado para ver, ele teve certeza que, naquele momento, aquela sombra, a coisa que ele mais temia no mundo, estava exatamente atrás dele. Dentro da casa”.

O velho voltou a olhar para a rua, para um ônibus que se aproximava. Estava com um sorriso no rosto como quem acabara de contar A história. Jonas, sem entender, perguntou abruptamente:

- E então?

- E então o que? – perguntou o velho levantando-se e entendendo a mão para o ônibus.

- O final! A história acaba aí?

- Sim, - disse o velho subindo os primeiros degraus do ônibus – esse é o bacana dessa história: a imaginação do ouvinte é quem completa o resto.


- Mas isso não é justo! – respondeu Jonas subindo junto com o velho, enquanto tirava o dinheiro do bolso – Uma história boa tem começo, meio e fim. E essa não teve fim!

Jonas se sentou na janela e o velho sentou ao lado dele.

- Claro que teve fim – o velho resmungou – a coisa estava atrás dele.
- Sim, isso eu percebi! Mas e daí? O cara morreu? Lutou com a sombra? Fugiu de casa? Ei! Você disse que essa história era real! Não tem nada de real nessa história!

- Claro que tem – respondeu o velho – isso realmente aconteceu!

- E como você ficou sabendo dessa história, então? Hein? A sombra te contou?

O velho pareceu sem palavras naquele instante, olhando sem jeito para as mãos. Jonas virou para a janela, sem graça, e ficou vendo as luzes noturnas passando enquanto o ônibus seguia noite adentro pela neblina.

Num determinado instante, porém, Jonas notou algo estranho. Toda vez que o ônibus passava por uma loja, ou estabelecimento com vitrines, o reflexo do ônibus em que ele estava era amarelo e não azul como o ônibus que ele pegava costumeiramente. Prestando mais atenção, ele percebeu que havia alguma coisa grande escrita na lateral do ônibus.

Foi quando ele passou por um banco, com sua frente toda em vidro, que a palavra ESCOLAR deu pra ser vista com clareza na lateral do ônibus refletida.

Jonas olhou desnorteado em volta. O ônibus estava cheio de crianças. Mas todas elas estavam sentadas, quietas, olhando fixamente para ele.

- Que porr... Mas que droga de ônibus nós pegamos??? – gritou ele para o velho.

Mas ao acabar de dizer essas palavras, o ônibus deu uma forte freada e seu motor desligou. Jonas olhou para o velho, que parecia estar rindo o tempo todo e gritou:

- Mas o que está acontecendo aqui???

- É como eu disse – falou o velho com uma voz sombria – sua história ficaria muito melhor se fosse de verdade.
Jonas olhou horrorizado para a janela atrás do velho, conseguiu ver, mesmo na escuridão, que o ônibus estava parado em cima de um trilho de trem. Antes que ele pudesse falar algo, ou até mesmo pudesse levantar para fugir, um apito de trem varou a noite e congelou os ossos do jovem.

O velho então se aproximou do ouvido de Jonas e falou:

- Sua história ficaria bem mais assustadora.
O velho então apontou para a janela ao lado de Jonas, para trás dele, de onde o apito de trem parecia ter vindo. O ônibus começou a tremer e uma luz forte de farol iluminou o rosto de velho de forma fantasmagórica.

Apesar de Jonas não ter se virado para ver, ele teve certeza que, naquele momento, a coisa que ele mais temia no mundo estava agora exatamente atrás dele.

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