sexta-feira, 1 de junho de 2012

A ponte - parte 2

Olá pessoal,
como prometido a 2° parte do conto "A Ponte", eu sei eu sei, meio grandinho, mas confiem em mim se derem a oportunidade vocês vão ficar congelados com a história!! 

Parei de ler, a garganta ressequida. Tomei um gole de cerveja. De Hirsch abriu os olhos.

— Admiravelmente completo — disse ele, gentilmente. — É um bom pesquisador, embora não tenha muita imaginação.

Ele virou-se para Baynes e acrescentou:

— Assumiu o caso a partir desse momento, Tenente?

— Isso mesmo — resmungou Baynes, fitando-o. — Mas só depois que os patrulheiros Reynolds e Rivkin revistaram a casa. Igualmente sem resultados. Foi então que jogaram o caso no meu colo. Sempre me encarregam dos casos mais malucos. Fui até lá no dia seguinte. Mas interrogar Hillyer era como perguntar ao gato o que aconteceu com o canário. Mas ele falou a respeito do ângulo da chantagem. Disse que cometera um erro há alguns anos. A tal de Montrose soubera da história. Desde então, ele vinha lhe pagando mil dólares por ano. Todos os anos, quando se encontrava nas proximidades, a mulher avisava que iria aparecer dentro de um ou dois dias e ele providenciava o dinheiro.

"Verifiquei com Nova York. Ela estava mesmo fichada. Assim, a história de Hillyer provavelmente era verdadeira. Também verifiquei com o banco local. Haviam enviado dez notas de cem dólares para Hillyer apenas três dias antes. 

 


"Revistei a casa, sem nada encontrar, exatamente como o guarda e os patrulheiros. A neve no terraço estava compacta, mas não o bastante para agüentar um homem sem deixar marcas.

Ou mesmo marcas de esquis. Talvez um tobogã não deixasse marcas.

"O problema é que ele nunca tivera um tobogã ou sequer um trenó pequeno em sua casa. A Sra. Hoff fizera uma faxina naquela manhã e até estivera na garagem, a fim de pegar seu material de limpeza. Teria visto alguma coisa tão grande quanto um tobogã. E jurou que toda essa idéia não passava de imaginação. E ele não poderia encomendar um tobogã especial por telefone, pois teria de ser entregue, e há semanas que ninguém levara qualquer coisa à casa além de comida e correspondência. Foi uma coisa que não deixei de verificar.

"Mas eu não tinha qualquer outra teoria. A garota tinha de estar em algum lugar! Convoquei quatro patrulheiros que sabiam esquiar e mandei que vasculhassem toda a área em torno da casa. Cobriram tudo num raio de meio quilômetro, inclusive duas ou três depressões e ravinas. Não encontraram quaisquer vestígios dela ou marcas na neve. Depois, começou a nevar novamente e tive de suspender as buscas. Mas estava certo de que ela não se encontrava em parte alguma onde pudesse ser encontrada.

"Hillyer estava desfrutando cada minuto da confusão. Adorava dar entrevistas e posar para as fotografias. Distribuiu cópias autografadas de seus livros para os jornalistas. Parecia de repente dez anos mais moço, de tanto que estava se divertindo.

"E não parava de fazer comentários de duplo sentido sobre o mistério de tudo aquilo. Citou um tal de Charles Fort, que escreveu sobre desaparecimentos misteriosos. Falou sobre desvanecimento espontâneo, brechas no contínuo espaço-tempo, seqüestro por homenzinhos verdes em discos voadores. Estava tendo o grande momento de sua vida.

"Assim, finalmente, tivemos de arquivar o caso. Absolutamente tudo que sabíamos era apenas os fatos com que havíamos começado. Uma garota subiu os degraus para a casa de Hillyer e simplesmente desapareceu. Assim, ficamos esperando que alguma novidade acontecesse. E foi o que se deu em junho.

Oliver Baynes fez uma pausa para terminar sua cerveja. De Hirsch acenou com a cabeça aristocrática, dizendo:

— E em junho o corpo foi encontrado.

Baynes fitou-o com alguma surpresa, confirmando:

— Isso mesmo. Em junho, Marianne Montrose deixou de ser uma espécie de mistério para se transformar em outra espécie de mistério. O que aconteceu...

Mas De Hirsch levantou a mão para detê-lo, sugerindo:

— Deixe Bob ler. Sei que ele escreveu tudo em seu estilo incisivo e dramático. E às vezes sinto o maior prazer com a prosa dele.

Assim, passei a ler:

Morgan's Gap, 3 de junho. Baseado nos depoimentos de Willy Johnson, 11 anos, e Ferdie Pulver, 10 anos.

Os dois garotos pararam ao lado do poço natural, que não chegava a ter 30 metros de largura. Estavam numa depressão comprida e estreita, com paredões escarpados de quase 15 metros de altura. Estendia-se por 300 metros até uma saliência rochosa, onde uma pequena catarata despejava-se na armadilha natural e fluía para formar o poço aos pés deles. O poço, por sua vez, despejava-se através de uma garganta estreita na rocha, apenas larga o suficiente para um garoto passar, estreita demais para permitir o acesso de um adulto.

Salgueiros e amieiros, verdejantes com folhas novas, estendiam-se na direção do sol. Tordos vermelhos entravam e saíam da depressão, corvos sobrevoavam lá em cima. Um tâmia olhava para os garotos de um galho próximo, sem demonstrar qualquer medo.

Eles estavam descalços, os sapatos nas mãos. A água estava gelada. Mas extasiados pelo pequeno mundo secreto da ravina, eles mal notavam a temperatura da água.

— Puxa, está sensacional! — exclamou Ferdie. — Vamos chamar a turma e brincar de piratas?

— Piratas? — repetiu Willy, desdenhosamente. — Pescar e muito mais divertido. Vamos, jogue seu anzol.

Ele prendeu uma minhoca relutante no anzol na ponta da linha e jogou no poço. Provocou pequenas ondulações na água verde e desapareceu. O garoto esperou por 30 segundos, depois deu um puxão impaciente.

— Ei, peguei alguma coisa! — gritou Willy.

— Não quer subir... deve estar preso em algum tronco.

Ele puxou com força. A linha foi deixando a água, lentamente, com um peso morto que quase não cedia. Ferdie não estava prestando a menor atenção. Olhava para o alto da ravina, onde um pequeno fragmento de algo branco pendia de um salgueiro.

— O que será aquilo? — perguntou ele, nervosamente. — Será que é um fantasma, Willy?

— Claro que não. — Willy nem mesmo olhou. Estava ofegante, enquanto recolhia a linha. — Puxa, enganchei num tronco ou algo assim...

Algo escuro e vermelho aflorou à superfície, rompendo a água com um lento movimento de redemoinho. Depois, a estranha massa virou e um rosto pálido e oval apareceu, cercado por um halo de cabelos dourados que balançava na água como se tivesse vida própria.

— Puxa! — gritou Willy, estridentemente. — É um cadáver! Vamos sair daqui, Ferdie!

Por trás deles, enquanto seus gritos desapareciam à distância, o rosto pálido e os cabelos dourados pareceram hesitar por um instante, como se esperassem. Depois, tornaram a afundar lentamente para as profundezas escuras e serenas de onde haviam saído.

Oliver Baynes retomou a narrativa, enquanto De Hirsch servia-se de mais uma dose do meu conhaque... acabando com a garrafa, diga-se de passagem:

— Os pais de Willy comunicaram a história ao guarda e o guarda chamou-me. Duas horas depois, meia dúzia de nós chegavam à casa de Mark Hillyer. O único meio decente de chegar à ravina sem fazer uma difícil escalada é descer através da propriedade de Hillyer. Ele se mostrou perfeitamente simpático. Quando lhe contamos o que queríamos, ele demonstrou apenas um ligeiro interesse.

"Hillyer chegou a dizer: — Se a encontrarem, revistem o bolso do blusão de esquiar. Ela tinha mil dólares meus quando saiu daqui e reivindico o dinheiro de volta.

"Chegamos à ravina, por um terreno de acesso difícil, baixamos as cordas. Começamos a procurar pelo corpo. Encontramos 20 minutos depois. Quando subiu, Danny Gresham, que estava conosco, imediatamente soltou um grito.

"E ele disse: — É ela! Mas como veio parar aqui, tão longe da casa? Ela deve ter voado!

"O corpo estava bem preservado, pois aquela água é gelada. E tinha mesmo dez notas de cem dólares no bolso do blusão. Continuamos a vasculhar o fundo do poço com os ganchos e finalmente encontramos o capuz e uma luva. Deixei os homens ainda vasculhando o poço e esquadrinhei a ravina pessoalmente. Afora umas poucas garrafas vazias e algumas latas, não havia coisa alguma que não devesse estar ali.

"Vasculhamos o poço durante o dia inteiro. Eu ainda acalentava a esperança de encontrar um tobogã ou algo parecido. Mas não havia nada. Tínhamos o corpo, a meio quilômetros da casa, sem qualquer indicação de como chegara até lá.

"Removemos o corpo e efetuamos a autópsia. Ela morrera de frio. O estômago estava vazio... não havia como determinar há quanto tempo fizera a última refeição por ocasião da morte. Não havia vestígio de veneno nos tecidos.

Oliver Baynes fez uma pausa, olhando para De Hirsch com uma expressão de desafio, antes de acrescentar:

— Aí está o caso da chantagista loura. Agora, vamos ouvir a sua explicação, sem recorrer a desaparecimentos espontâneos, brechas no contínuo espaço-tempo, pontes de vidro e discos voadores.

Meu amigo húngaro uniu as pontas dos dedos, com uma expressão pensativa.

— Não posso — disse ele, afavelmente. E quando uma expressão de triunfo estampou-se nas feições avermelhadas de Baynes, De Hirsch acrescentou: — Não posso, sem mencionar a ponte de vidro, o disco voador e, acima de tudo, a mortalha.

— Claro, claro! — O Tenente Baynes parecia irritado. — Dê-nos mais algumas palavras empoladas e depois reconheça que não tem a menor idéia do que aconteceu com a garota!

— Não posso fazer isso — protestou De Hirsch, com uma expressão de satisfação. — É que sei o que aconteceu com ela. Ou pelo menos saberei quando acrescentar o último item que deixou fora da narrativa.

— Deixei fora? — murmurou Baynes, aturdido.

— O objeto branco que Ferdie Pulver pensou que fosse um fantasma — explicou De Hirsch.

— Ah, sim... — Baynes deu de ombros. — Era apenas um lençol velho e rasgado, preso nos galhos do salgueiro. Tinha a marca de lavanderia de Hillyer. Ele disse que devia ter sido arrancado do varal, em alguma ventania da primavera. Não significava absolutamente nada. Os peritos examinaram meticulosamente, quase fio a fio. Era apenas um lençol velho.

— Não, não era apenas um lençol velho — murmurou De Hirsch, numa suave correção. — Era uma mortalha. Exatamente como eu disse... uma ponte de vidro, um disco voador e uma mortalha. Não pode perceber, na arrogância do orgulho por seu próprio intelecto, que Hillyer disse a verdade. Ele forneceu-lhe todas as pistas. Ou pelo menos forneceu ao guarda Redman e constavam do depoimento. Hillyer matou Marianne Montrose e despachou-a para longe num disco voador, por cima de uma ponte de vidro, para o lugar nenhum... que neste caso é a eternidade.

Baynes mastigou o lábio inferior. Ficou olhando fixamente para De Hirsch, aturdido. E eu também. Era exatamente a situação que De Hirsch mais apreciava... quando podia dispensar a frustração à guisa de explicação.

Lentamente, Baynes meteu a mão no bolso. Tirou a carteira. Pegou uma nota de 20 dólares. E disse, incisivamente:

— Vinte dólares dizem que você está apenas blefando.

Os olhos de De Hirsch se iluminaram. Mas, depois, ele suspirou e sacudiu a cabeça, murmurando:

— Não. Somos ambos hóspedes de um velho e prezado amigo. Não seria digno de um cavalheiro aceitar dinheiro de outro hóspede por um problema tão simples.

Baynes rangeu os dentes. Tirou mais duas notas da carteira e disse asperamente:

— Cinqüenta dólares garantem que você não sabe mais do que nós.

De Hirsch fixou em mim os seus olhos pretos e profundos. Calculei apressadamente o que receberia por uma história policial verídica que escrevera recentemente e tirei o talão de cheques.

— Aposto cem dólares que você não é capaz de nos dar a solução — anunciei, fitando-o nos olhos.

Eu sabia que meu amigo húngaro não tinha cem dólares ou mesmo 50 dólares, desconfiava que não havia em seus bolsos ao menos cinco dólares. O Barão de Hirsch empertigou-se.

— Estão me tornando impossível recusar, como um cavalheiro. Mas precisarei de alguma ajuda... precisarei de um pregador de roupa.

A boca entreaberta de Baynes se fechou. E a minha fechada se entreabriu.

— Na gaveta à esquerda da pia da cozinha — informei. — Deve estar em algum lugar por lá. A Sra. Ruggles, minha faxineira...

Levantando-se com um movimento ágil, De Hirsch já deixara a sala, tirando do bolso no caminho um lenço de linho branco e imaculado. E uma caneta-tinteiro.

Olhei para Baynes. Ele olhou para mim. Nenhum dos dois falou. De Hirsch ausentou-se por apenas cinco minutos. Ouvi uma gaveta abrir. Ouvi um som abafado, que podia ser o da geladeira sendo aberta. Ou o freezer. De Hirsch voltou à sala e sentou-se. Abriu a nova garrafa de conhaque, que eu pegara sem dizer nada depois que ele olhara para a vazia com uma expressão especulativa.

— Vai demorar alguns minutos — informou ele, jovialmente. — Enquanto isso, podemos conversar. O que vocês acham da situação política?

— Que se dane a situação política! — explodiu Baynes. — O que tem a dizer sobre Hillyer e a garota? Como foi que ele a matou?

De Hirsch bateu com a palma da mão na testa, exclamando:

— Esqueci de perguntar! Hillyer sofre de insônia? Baynes franziu as sobrancelhas.

— Sofre, sim. Isso consta do relatório que recebi do médico dele. Mas o que...

De Hirsch não o deixou continuar:

— Evidentemente, era o que eu presumia. Mas é claro que nunca se deve presumir coisa alguma. Ora, Tenente, Hillyer matou-a pondo pílulas para dormir num drinque. Quando ela ficou inconsciente, Hillyer tirou-a da casa e enterrou-a na neve profunda da Harrison's Gully. Ali, no devido tempo, o corpo absorveu as pílulas para dormir. A moça acordou quase congelada. Por um breve momento, misericordiosamente breve, ela se debateu contra os grilhões de ferro que a prendiam. Depois, foi dominada pelo sono aprazível que envolve os que congelam, conduzindo-a pelos degraus compridos e escuros até a morte.

— Uma prosa das mais bonitas — resmungou Baynes. — Mas não disse coisa alguma. Não havia grilhões de qualquer espécie. Nenhuma marca no corpo. Absolutamente nada. É possível que ele a tenha deixado inconsciente com pílulas para dormir. Eu próprio já havia pensado nisso. Mas o que aconteceu em seguida?

O Barão de Hirsch demorou algum tempo a responder. Finalmente virou-se para mim e disse:

— Diga-me uma coisa. Bob... Na sua opinião, Mark Hillyer alcançou uma pequena forma de imortalidade com este caso? Encontrou a fama que sempre procurou e que sistematicamente se lhe esquivava?

— Claro que sim — respondi, sem a menor hesitação. — Já há muita especulação entre os fãs do crime, se ele a matou ou não. O mistério de como ela foi parar na ravina é tão provocante quanto o mistério famoso do que aconteceu a Dorothy Arnold. Daqui a cem anos, o nome de Hillyer ainda estará aparecendo em livros, os estudiosos discutindo se ele foi culpado ou inocente. Como Baynes disse, ele está na crista da onda. Tem um livro novo para sair e os antigos tiveram novas edições. Hillyer tornou-se famoso e assim continuará enquanto o caso permanecer insolúvel. E quanto mais tempo ficar insolúvel, mais famoso ele se tornará. Foi o que aconteceu com Jack o Estripador.

— Ahh... — murmurou De Hirsch. — E assim que o caso for resolvido, ele se torna apenas infame... um sórdido assassino. Um choque para um ego... especialmente para um ego como o dele. Mas acho que agora já podemos discutir o mistério da ponte de vidro, o disco voador e a mortalha... tudo invisível!

Ele levantou-se e foi à cozinha. Ouvi novamente a porta da geladeira ou do freezer ser aberta e fechada. De Hirsch voltou com alguma coisa na mão. Estava coberta por um guardanapo e assim não podíamos ver do que se tratava. Ele pôs o objeto sobre o tampo polido da mesinha de café. E disse, a voz subitamente incisiva e autoritária:

— Agora, vamos voltar a fevereiro último. É uma tarde terrivelmente fria. Mark Hillyer, furioso e desesperado, está parado na janela, esperando a aproximação do carro de uma chantagista. Sabemos o que mais ele viu... crianças brincando. Observando-as, uma idéia explodiu em sua mente, completa e requintada, como Minerva saltando da testa de Júpiter. Ele podia se livrar da chantagista com toda segurança, precisando apenas de um mínimo de sorte. Se falhasse... ora, era um homem doente e poderia alegar extrema provocação. Se conseguisse... mas que prazer contemplar o mundo estúpido perplexo com o mistério que ele criara!

"Mark Hillyer entrou em ação imediatamente. Pegou um lençol velho, o maior que possuía, estendeu-o sobre as lajes do terraço ao norte. Fez algumas coisas com o lençol e depois voltou para o interior da casa. A tal de Montrose chegou alguns minutos depois. Hillyer conversou com ela, deu-lhe um drinque em que estavam dissolvidas as pílulas para dormir. Mais 20 mi-nutos ou por aí e ela desabou, inconsciente.

"Hillyer derrubou-a da poltrona para o chão. Ajeitou-a em cima de um pequeno tapete. Como podem ver, não houve qualquer esforço exagerado para afetar seu coração avariado.

"Hillyer arrastou o tapete pelo chão até o terraço. Ali, rolou a mulher inconsciente para o lençol estendido. Ajeitou-a de tal forma que ela ficou bem no meio...

Com um gesto teatral, De Hirsch arrancou o guardanapo sobre o objeto em cima da mesinha. Vimos que era o seu lenço. Alguma coisa estava no meio do lenço... um pregador, com olhos e boca marcados a tinta, como se fosse uma mulher em miniatura e o lenço fosse um lençol.

Para ver o pregador, tive de levantar um dos cantos do lenço. É que os quatro cantos estavam dobrados para o centro, cobrindo inteiramente o pregador, como se fosse um envelope. E o lenço estava duro e rígido.

Compreendemos então o que De Hirsch fizera. Molhara o lenço e o pusera no freezer. Como roupa no varal num dia de inverno, o lenço ficara rígido. Lá dentro, aprisionado, estava o pregador, representando uma mulher. Formava um embrulho impecável e perfeito. Se fosse um lençol de verdade e uma mulher de verdade no meio, não deveria formar um volume muito grande.

E finalmente Baynes e eu entendemos como Mark Hillyer cometera o crime e se livrara do cadáver. Molhara um lençol grande num dia de intenso frio. Pusera uma mulher inconsciente no meio do lençol, enroscada, dobrara os cantos por cima dela. O frio congelara o lençol molhado, transformando-o numa espécie de caixa, tão dura como se fosse de madeira. Em poucos minutos, Marianne Montrose, inconsciente, era uma prisioneira dentro de uma mortalha congelada, tão formidável quanto grilhões de ferro. Depois, ele empurra o objeto largo pelo terraço e a superfície dura da neve. Por causa da dispersão do peso, não ficara qualquer marca. A coisa deslizara suavemente pela encosta, adquirindo velocidade, passando por cima dos obstáculos, até finalmente saltar da beira da encosta e mergulhar para as profundezas da ravina.

Como se fosse um exemplo, De Hirsch deu um piparote com o dedo no lenço congelado. Girou pela mesa e caiu pela beira, mergulhando numa cesta de papel.

Ali, entre as folhas de papel que eu jogara fora, subitamente desapareceu.

— Um disco voador! — exclamou De Hirsch. — No depoimento de Danny Gresham, ele mencionou especificamente as novas conchas de alumínio com que algumas crianças estavam brincando na neve. São discos de metal, em que uma criança senta e desliza pela encosta, numa velocidade realmente impressionante. A superfície de contato com a neve é mínima. Foi o que Hillyer viu, o que lhe deu a idéia sobre a maneira de livrar-se do corpo.

"A ponte de vidro já estava ali... uma camada fina e escorregadia de gelo, por cima da neve sobre a encosta de sua casa até a ravina. Ele fez o disco voador com um lençol molhado e exposto ao frio intenso. E tornou-se a mortalha da mulher, quando ele a ajeitou no meio e dobrou as pontas por cima.

"E lá se foi, girando, deslizando. Não podia parar. Saltou da beira, caiu na ravina. Um objeto branco, na neve branca. Invisível para olhos a procurarem. Um pouco de neve foi soprado por cima e a coisa desapareceu. Para encontrá-lo, era preciso pisar em cima. E não havia muita possibilidade de que isso acontecesse.

"Lássd! Ou, para dizer em francês, voilá! Um mistério desconcertante e impenetrável fora criado, com o aproveitamento de um lençol velho e as forças naturais do inverno. Uma mulher fora transportada por uma distância de meio quilômetro, através de algum meio aparentemente milagroso. Um homem doente cometera o crime aparentemente perfeito!

— Mas que desgraçado! — explodiu Baynes. — Dizendo na minha cara como cometera o crime e fazendo-me pensar que era apenas uma gozação! A mulher e o lençol provavelmente ficaram presos no galho até a primavera. Quando veio o degelo, o lençol descongelou, a mulher caiu e foi arrastada para o córrego até o poço, não deixando coisa alguma em sua esteira... nenhuma pista, nenhum vestígio, apenas um lençol velho!

— Mas se, com imaginação, alguém vê o lençol como uma mortalha... — De Hirsch estendeu a mão para o dinheiro e o meu cheque na mesinha. — ... e se alguém aceita os comentários de um homem esperto pelo que são, então um mistério pode se transformar numa coisa corriqueira.

— Jamais conseguiremos provar — murmurou Baynes.

— Talam! — disse De Hirsch. — Talvez não. Mas podemos deixá-lo saber que seu mistério não é mais um mistério e que ele não mais será o tema de estudos não muito espertos de homicídios no ano 2000. Vou escrever-lhe uma carta.

Ele foi até o meu gabinete e bateu na máquina de escrever durante meia hora. Despachou a carta naquela mesma tarde. Mark Hillyer recebeu-a na manhã seguinte. Não sei o que dizia a carta, mas Oliver Baynes, através da empregada, descreveu-me a reação de Hillyer.

A Sra. Hoff estava arrumando o escritório quando o carteiro chegou. Levou a carta para Hillyer, que estava no terraço. Ele parou de escrever para abri-la. Mal tinha começado a ler quando ficou mortalmente pálido... tão pálido que a Sra. Hoff tornou a se aproximar, alarmada. Enquanto continuava a ler, o rosto de Hillyer foi ficando vermelho, de forma assustadora. Mal olhou para a segunda página, antes de rasgar a carta e jogar os pedaços num cinzeiro grande de latão. Acendeu um fósforo com mãos que tremiam tão violentamente que mal conseguia riscá-lo. E queimou a carta rasgada.

Como se ainda não fosse capaz de aliviar a raiva, ele pegou o cinzeiro e arremessou-o no chão. Por um instante, ficou de pé, olhando para o norte, na direção de Harrison's Gully, as mãos fechando e abrindo.

E depois começou a respirar com dificuldade. Virou-se, estendendo a mão para se apoiar, mas caiu antes de conseguir alcançar a cadeira. Apertando a garganta e o peito, ele balbuciou:

— Remédio... meu remédio...

O estimulante para o coração não estava no armarinho de remédios, mas sim na mesinha de cabeceira. A Sra. Hoff demorou dois ou três minutos para encontrá-lo. Quando voltou apressadamente ao terraço, Hillyer já estava morto.

Admito que fiquei um tanto chocado. Mas De Hirsch tomou conhecimento da morte de Hillyer com a maior serenidade.

— Utovegre! — exclamou ele. — O que significa que tal reação é tão boa quanto uma confissão.
[FIM?]

até a hora do chá... tenha bons sonhos,
Liah

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